O SOM MAIS INCRÍVEL DO MUNDO

Três carnavais atrás, eu corria pelas ruas de Porto Alegre enquanto minha camisa azul se tornava vermelha. Dependendo de como você encara a vida, talvez possa considerar sorte levar um tiro no peito a poucas quadras de um hospital e ser liberado com apenas alguns curativos. Certo é que as coisas são tão aleatórias que a diferença entre a vida e a morte pode ser somente uns míseros centímetros. Alguns pensam que experiências traumáticas são ímpeto para mudanças e questionamentos, mas quem sabe somente nos façam regredir as nossas zonas de conforto e às miríade de escapismos que criamos para romper o silêncio da existência.

Eu ainda lembro. Não do rosto, não da arma, não do cheiro da própria carne queimada, não do vazio que foi introjetado em meu corpo, tudo isso eu tratei de esquecer. O que me recordo é do som: o som mais fantástico que já escutei. Desde criança, gosto de bater em certas coisas com meus dedos, simplesmente para sentir a vibração pelos meus ossos, para ser surpreendido pelas alturas imprevisíveis formadas nos blangs e blongs; algo me fascina nessa conexão entre a audição e a sensação da vibração física. Mas esse som foi a experiência estética mais impactante de todas, e é disso que escolhi me lembrar. Uma vibração profunda, densa, uma onda de 30Hz reverberando pelos ossos, calando os pensamentos, isolando tudo ao redor, parando o tempo enquanto um pedaço de minha pele e carne eram atravessados em uma fração de segundo. Naquele breve instante, não havia espaço para dor, racionalidade ou consciência, tudo o que existia era vibração; eu nunca estive tão vivo. Passado o momento - de volta à realidade bruta - as memórias são mais difusas. Enquanto a certeza da morte rapidamente se afastava, as incertezas da vida se ramificavam geometricamente, viver é muito mais complexo do que morrer.

Mais tarde, enquanto era atendido no hospital, os movimentos frenéticos na minha mão devem ter incomodado a ponto de me administrarem algum tipo de sedativo leve. Mal sabiam que a coisa mais urgente do momento era estudar a frenética cadência do primeiro concerto de Shostakovich, buscar no som imagético conforto para aliviar o choque. A vida pode ser interrompida a qualquer momento, mas o universo segue oscilando, segue fazendo música indiferente a todo o resto: se existe algum propósito ou sentido, esse pode ser simplesmente vibrar, independente do quão caóticas e imprevisíveis forem as ressonâncias.